20 Anos de PCC – o Efeito Colateral da Política de Segurança Pública
No dia 6 de outubro, ocorreu mais um “pancadão” na cidade de São Paulo, do qual poucos tiveram notícias ou puderam participar. Ao som do funk estilo ostentação das periferias paulistanas, mulheres celebraram o aniversário de 20 anos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Sem mesmo que as autoridades soubessem, a festa ocorreu dentro da Penitenciária Feminina de Santana, unidade com quase 600 mulheres e espaço para 251 pessoas. Um MC (cantor de funk) veio de fora para tocar na balada, numa cena insólita, mais uma entre tantas as surpresas que a presença e a força do PCC em São Paulo ainda conseguem provocar.
Ao longo dessas últimas duas décadas, desde seu nascimento, no dia 31 de agosto de 1993, já são muitos estudos e reportagens feitas sobre a facção criminosa. A maior parte dos dados foi colhida a partir de grampos e documentos de investigações policiais, mas também foram feitas entrevistas com seus integrantes, que tiveram suas histórias descritas. Ainda assim, existem lacunas a serem preenchidas, questões relevantes que não foram desvendadas. Se os segredos do PCC pudessem ser mostrados pela imagem de um quebra-cabeça, poderia se afirmar que ainda estamos no meio da jornada, em busca das peças-chaves para conseguir enxergar toda a imagem.
Parte das peças desse quebra-cabeça chegou com a investigação feita pelo Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo nos últimos três anos, reveladas pelo jornal O Estado de S. Paulo, que resultou na denúncia de 175 acusados de pertencerem ao grupo. A quantidade de informações reunidas foi um passo importante para se compreender o atual estágio de maturidade do PCC. É como se, de repente, inúmeras peças se encaixassem ao mesmo tempo e apresentassem um retrato mais preciso da facção. Foram milhares de escutas que captaram horas e horas de conversas entre as principais lideranças, além de documentos e provas que chegaram até nas relações promíscuas que os criminosos mantêm com integrantes das forças de segurança. Informações que precisam ser filtradas e contextualizadas na história da facção e do crime em São Paulo.
Num primeiro momento, o impacto da revelação foi político. Novamente, o governo de São Paulo foi forçado a admitir que o PCC permanece forte e atuante dentro e fora dos presídios. Até meados deste ano, os principais responsáveis pela área de segurança diziam à opinião pública que a facção se restringia a não mais que 30 lideranças encarceradas. Documentos revelaram, no entanto, que existem 11.182 filiados ao PCC no Brasil. Só em São Paulo são 7,6 mil, com 1,6 mil deles em liberdade. O PCC já se espalhou por 22 estados e fatura cerca de R$ 8 milhões por mês com o tráfico de drogas e mais R$ 2 milhões com loterias e contribuições. Se, de um lado, a taxa de homicídios em São Paulo havia sido reduzida em mais de 70% na última década, de outro, o universo do crime permanecia funcionando a todo vapor, com seus participantes roubando, vendendo drogas e se articulando para fazer prosperar os negócios ilegais. Como explicar esse aparente paradoxo?
Apontar as principais descobertas sobre a facção, contextualizar essas informações e compreendê-las, tendo em vista as políticas de segurança pública adotadas em São Paulo e no Brasil, nos últimos 20 anos, é o objetivo principal deste artigo. Existem muitas peças soltas que ainda precisam ser encaixadas. Apesar da quantidade acumulada de dados, há questões ainda obscuras. Como, afinal de contas, o PCC ganhou legitimidade na cena criminal paulista? Qual é a real capacidade da facção para liderar e determinar o comportamento dos criminosos no Estado? É mito ou a facção teve algum papel na redução dos homicídios? Como o chamado Partido do Crime cresceu e se fortaleceu justamente em um período em que os governos democráticos paulistas mais investiram na área de segurança pública e mais expandiram o sistema penitenciário? Para dar essas respostas é necessário refletir sobre a história do crime e da violência em São Paulo, retomar a trajetória do PCC e dos criminosos paulistas e comparar o cenário com a situação de outros estados.
O nascimento em meio ao caos
Uma partida de futebol dentro do presídio de segurança máxima, em Taubaté, no interior de São Paulo. Briga entre os times e morte dos envolvidos no entrevero. A punição na prisão era certa, mas oito presos, entre eles Geleião e Cesinha, decidiram se juntar para reduzir o prejuízo. Era dia 31 de agosto de 1993. Assim nasceu o Primeiro Comando da Capital (PCC), que depois se consolida ao propagar aos detentos que surgia para acabar com “a opressão no sistema carcerário”. A versão sobre a origem da facção foi retratada no livro Cobras e Lagartos (2005), do jornalista Josmar Jozino e, hoje, serve de referência aos próprios presos para celebrar o nascimento da facção.
O começo dos anos 1990 foi um período marcante no submundo do crime por razões que só seriam compreendidas em retrospecto, anos depois. Onze meses antes da fundação do PCC, no dia 2 de outubro de 1992, policiais militares ingressaram no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru, durante uma rebelião de presos. O resultado da incursão atabalhoada da Polícia Militar foi a execução de 111 detentos, tragédia que ficou conhecida como o Massacre do Carandiru. Parte da população aplaudiu, segundo pesquisas de opinião. Mas, o sistema penitenciário paulista nunca mais seria o mesmo. O estado compreendeu a necessidade urgente de mudanças. No ano seguinte, seria criada a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, responsável pela expansão do sistema carcerário nos anos que viriam.
Os números mostram a dimensão da guinada na política de segurança nesse período. No começo dos anos 1990, havia, em São Paulo, 94 presos por 100 mil habitantes. O sistema prisional tinha 38 mil presos espalhados por 43 unidades no final do governo Luiz Antonio Fleury Filho. Nos anos que se seguiram, as transformações ocorreram velozmente. Atualmente, existem 157 prisões, que abrigam 210 mil presos, o dobro da capacidade do sistema. São Paulo tem, atualmente, 500 presos por 100 mil habitantes, o que representou um crescimento de 430% em 20 anos. Foi, justamente, associado ao período de expansão intensa dos presídios e da população carcerária que o PCC se fortaleceu e se legitimou.
Entre os presos e criminosos em liberdade, o Massacre do Carandiru fortaleceu o discurso em defesa da união no submundo do crime. O foco deveria ser dirigido contra o Estado, representado pelas forças de segurança. As próprias brechas do sistema eram usadas para tentar dissemi nar a ideia, em um período que ainda não havia telefones celulares. A rebelião em cadeias era uma das estratégias para a expansão. O governador Mário Covas enfrentou uma série delas em 1995, seu primeiro ano de governo. Como a pena pelas rebeliões era a transferência das lideranças conflagradas, a ferramenta foi uma forma importante para disseminar a ideia entre presos de outras unidades.
Era, ainda, preciso evitar mortes desnecessárias no crime, objetivo que durante anos parecia uma utopia inatingível. Do lado de fora da prisão, a década de 1990 havia sido especialmente trágica para homens e jovens das periferias. Desde 1995, a cidade de São Paulo havia ultrapassado a casa dos 50 homicídios por 100 mil habitantes, chegando a 63 mortes por 100 mil habitantes em 1999, taxa mais elevada do que a do Iraque em dois anos de guerra. Nas periferias, os jovens se envolviam em disputas sangrentas, movidos, principalmente, por vingança, respondendo na mesma moeda aos assassinatos contra parentes e amigos – um círculo vicioso intenso e cruel. Nesse contexto de grande tensão, um olhar fixo poderia ser razão para a prática de um novo assassinato, como se os homicídios fossem uma escolha habitual, espécie de remédio para diferentes tipos de conflitos.
Mesmo os criminosos, principais responsáveis pelos assassinatos em São Paulo, já compreendiam que os homicídios eram prejudiciais a eles próprios. Os que passavam dos 25 anos eram chamados de sobreviventes. Sabiam (como contaram em entrevistas) que, ao matar alguém, ficavam sujeitos à vingança e passavam a fazer “hora-extra na terra”. Nesse contexto, o estatuto do PCC, relevado em 1996, fazia sentido ao insistir na defesa da paz e na união “entre os irmãos”, tema presente na maioria dos 16 artigos originais. Apesar do discurso, na prática, assassinatos, conflitos e disputas continuavam batendo recordes. O pico da curva foi alcançado seis anos depois da criação da facção, com mais de 15 mil assassinatos no estado, patamar que permaneceria nos anos de 2000 e 2001, apesar de já revelar uma tendência de queda. As políticas públicas criariam as condições necessárias para que esse novo arranjo social se estabelecesse em território paulista, apesar de as soluções partirem das populações mais afetadas pela violência.
Assim como ocorre em países em guerra, São Paulo também produziu uma geração de finados dos anos 1990. A lacuna demográfica que se formava provocou reações nas comunidades mais atingidas pelas mortes, uma tentativa de se buscar saídas para reverter o caminho do autoextermínio. As respostas vieram em diversas frentes. É a época dos Racionais MCs e da cena hip-hop paulistana, que se autointitulava a CNN da Periferia, dos livros e cinemas periféricos, que ajudaram na reflexão e na crítica sobre o momento crítico. As igrejas neopentecostais, que ofereciam o caminho da conversão para mudar de vida, também se voltaram para o resgate daqueles que tentavam fugir desse ciclo, cujo destino é o “cemitério ou a cadeia”.
A dura realidade moldou o comportamento dos jovens locais, fortalecendo valores de respeito horizontal entre homens que se relacionam de igual para igual. O lema da torcida organizada corintiana Gaviões da Fiel segue a mesma linha. O popular LHP (Lealdade, Humildade e Procedimento), pregado nos estádios, escrito em uma bandeira de 120 metros de comprimento, defende, acima de tudo, o respeito entre os integrantes do grupo e a submissão às regras da torcida. A ideia é que os corintianos não devem brigar entre si, mas nada os impede de ser desleais e arrogantes com são-paulinos e palmeirenses.
O “ladrão”, “vida loka” ou “correria”, empregado na “profissão perigo”, o homem que vive em um contexto violento, deve saber respeitar e só atacar na hora certa. No crime, ele precisa seguir “o caminho certo da vida errada”, o que significa que a arma pode estar virada contra “os outros”, mas nunca estar voltada para os próprios irmãos. Ter proceder (agir de acordo com as regras do mundo do crime) é uma das principais qualidades que se espera do criminoso paulista. É em cima dessa tremenda sensação de vulnerabilidade, cria da no contexto de caos das periferias nos anos 1980 e 1990, que o PCC vai conseguir crescer e se legitimar dentro e fora das prisões.
Economia do crime e a mediação no mundo das sombras
A construção dessa estrutura de organização do mundo do crime foi ganhando formato aos poucos, mudando de acordo com os erros. Duas são as pilastras principais desse arcabouço. De um lado, o PCC é fortemente liberal diante das carreiras criminosas individuais. A facção não tenta estender seus tentáculos sobre a iniciativa dos ladrões e traficantes autônomos que querem ganhar dinheiro. Quanto mais próximos da facção, no entanto, maior a proteção por parte dos irmãos, importante principalmente nas temporadas dentro da prisão. De outro lado, o PCC é duro e cruel para punir aqueles que desobedecem as normas do “proceder” criminal. São penalizados os que contribuem para a desordem nos territórios e prisões onde a facção está presente. Assim, todos os ladrões são livres para atacar os patrimônios alheios, mas é preciso respeitar as regras do crime e não atropelar criminosos e moradores de bairros onde os negócios são feitos. Diante de conflitos no crime, a primeira opção é “esticar o chiclete”, gíria que significa argumentar, em substituição ao uso das armas e balas. Estava inaugurada uma nova burocracia do crime. Matar se transformara em uma atividade controlada por normas e ritos.
A partir do aprimoramento do papel de agência reguladora do crime, exercido pela facção, a economia ilegal paulista vem prosperando sem a ocorrência de grandes conflitos que desencadeiem guerras no submundo criminal. Em 2012, ocorreram 237 mil roubos no Estado de São Paulo e 195 mil roubos e furtos de carros. Trata-se de uma produtividade e tanto. Somados, representam 50 casos por hora. São crimes que não podem ser vistos de forma isolada. Por trás de cada automóvel levado, há uma ampla rede de contatos, como receptadores, funcionários para esquentar documentos, desmanches que separam e desovam as peças no mercado, entre outros. O mesmo ocorre com o incomensurável mercado de drogas paulista. Em 2012, foram 41 mil flagrantes por tráfico. O comerciante de drogas no varejo precisa se relacionar com atacadistas de diferentes portes, lidar com as polícias, sem falar na promoção de festas, vistas, atualmente, como uma forma de movimentar o mercado. Há, ainda, a negociação das armas de fogo, que também faz parte dessa rede intrincada de negócios ilegais. O PCC é um importante atacadista, mas a droga pode ser comprada de outros fornecedores, conforme mostram as escutas do MPE.
Os mais de 210 mil nas prisões também fazem parte desse universo. Considerando os familiares dos presos, pode-se dizer que cerca de um milhão de pessoas gravitam direta ou indiretamente em torno das rotinas do cárcere, que envolvem também visitas em ônibus para o interior do estado, jumbos (pacotes) com comidas e outros produtos para ajudar a manter os presos, entre outras tarefas.
Toda essa multidão que integra a economia do crime, atualmente representando um percentual importante da população paulista, praticamente não pode contar com o Estado. No caso dos criminosos, eles dependem justamente da ausência do Estado para fazer prosperar suas atividades ilegais. Como não contam com o auxílio das polícias ou da Justiça para resolver conflitos e cumprir acordos, eles se relacionam em um contexto propício para se transformar em selvas, onde “um dia você é o predador, no outro é a presa”, como diz a letra dos Racionais. A legitimidade do PCC nesse cenário cresceu conforme o nome da facção passou a ser vendido como a instituição capaz de mediar conflitos e garantir a manutenção do “proceder” em territórios e mercados anteriormente conflagrados. Uma espécie de ordem paraestatal, que busca exercer o monopólio da força onde grupelhos e indivíduos sempre se digladiaram entre si.
Vale comparar com a trajetória seguida pelas facções no Rio de Janeiro. No final dos anos 1970, os criminosos fluminenses começaram a se organizar dentro das prisões. Era a mesma época em que o comércio de cocaína começava a crescer no mundo, vinda do Peru, da Bolívia e da Colômbia. Na década seguinte, quando os cartéis de Cali e Medellín buscavam parcerias, o Comando Vermelho (CV) já havia se estruturado minimamente e optado pelo tráfico de drogas como forma de financiamento.
Apesar de ter nascido também com a proposta de lidar com a desordem nas prisões, o CV cresce voltado fundamentalmente para o lucro no comércio de drogas. Entre os anos de 1983 e 1986, iniciou sua ofensiva para dominar as bocas de fumo tradicionais nos morros do Rio de Janeiro. Em 1985, estudos estimam que o CV já comandava 70% de todos os pontos de venda. A organização buscou assumir o monopólio no varejo para poder negociar em boa posição com os atacadistas internacionais.
A facção, assim, estabeleceu o formato do negócio altamente hierarquizado, dominando o cotidiano dos territórios, com estruturas que chegavam a até 500 homens em um morro. O objetivo era aumentar os lucros e ampliar os mercados. Não se buscava organizar um cenário conflagrado, como em São Paulo. Líder do Comando Vermelho, Fernandinho Beira-Mar foi, na década de 1990, o maior atacadista brasileiro de drogas, com contatos no Paraguai, na Bolívia e na Colômbia. Segundo relatórios da inteligência da Polícia do Rio de Janeiro no período, movimentava US$ 240 milhões por ano e tinha faturamento líquido de US$ 44 milhões. Quatro vezes mais do que as estimativas atuais sobre o PCC.
Em meados dos anos 1990, desavenças entre os cabeças da facção CV provocaram um racha que levou ao surgimento de facções rivais, como o Terceiro Comando (TC) e Amigos dos Amigos (ADA). Eles precisaram montar estruturas semelhantes para competir e disputar mercados na base das invasões e tiros de fuzis. Depois de mais de quase 20 anos de disputas, o processo de fragilização das facções ficou claro em 2010, com a ocupação das forças de segurança do Complexo do Alemão e a cena dos traficantes em fuga. A trégua seria uma necessidade para baratear os custos da operação da droga.
A questão da pacificação, portanto, não é moral, mas estratégica. PCC não é melhor que CV, TC ou ADA. Tanto Beira-Mar como integrantes do PCC já foram acusados de torturas capazes de embrulhar o estômago. Em São Paulo, até um coração foi comido em um ritual dentro da prisão. A diferença dos caminhos seguidos foi decorrência da estratégia usada pelos grupos diante do contexto que se apresentava. Mais de 30 anos depois do boom do tráfico no Brasil, a via escolhida pelo PCC, consolidada somente na última década, tem dado mais resultados, e o grupo paulista é hoje o mais forte e mais influente no universo criminal brasileiro.
“O crime fortalece o crime”, disse por celular o fora-da-lei paulista Gegê do Mangue, em 2010, ao seu parceiro no crime fluminense Nem, que era o chefe do tráfico na Rocinha e integrante da facção Amigos dos Amigos (ADA). A conversa deixava evidente a estratégia das partes nos tempos atuais. O PCC, que já era parceiro de Beira-Mar e do CV, queria vender também para a ADA. Eles perguntam a Nem se ele se incomodava com a relação entre PCC e CV. Nem afirma que não e que aceita conversar. A Rocinha ainda não havia sido pacificada. O líder da facção fluminense diz que mortes e lutas anteriores não permitem que CV e ADA se aproximem, mas aceita um acordo para cessar as invasões de território e tomadas de mercado à força. Anos de disputas sangrentas, que fazem parte da história do crime no Brasil, já ensinaram suas lideranças: homicídio significa prejuízo. Trocaram a guerra pela Pax Sceleris.
O discurso dos criminosos paulistas em defesa da ordenação da selva e a criação desse arcabouço para organizar as ações no crime fortaleceram o mito de que o PCC teria sido responsável pela queda dos assassinatos em São Paulo ao longo da ultima década. Um dos que defendem a tese é Marco Herbas Camacho, o Marcola, apontado como articulador número 1 do PCC. Ele o faz em uma conversa por celular com outro criminoso em 2011, no interior da Penitenciária de Presidente Venceslau 2. “Hoje para matar alguém é a maior burocracia”, falou Marcola no grampo, referindo-se às normas impostas pela facção na cena do crime. “Então, quer dizer. Os homicídios caíram não sei quantos por cento e aí eu vejo o governador chegar lá e falar que foi ele”, completou o criminoso.
E de fato essa burocracia existe. De acordo com as normas na atualidade, quando alguém tem alguma queixa contra outro na prisão ou em um território onde a facção exerce influência, deve se dirigir a um tribunal do PCC. “Sangue se paga com sangue” é um dos lemas, que significa que mortes praticadas sem o aval ou contra os interesses da facção levam ao assassinato do autor. Os “debates”, espécies de julgamentos informais, já foram narrados em grampos, relatados por moradores e testemunhados por jornalistas e pesquisadores. Pode envolver penas leves e pesadas. Em um dos eventos ocorridos, no bairro do Jaçanã, na periferia norte de São Paulo, um traficante, acusado de bater injustamente no rosto de um morador, foi condenado a receber dois socos no rosto dados pela vítima. O controle desses conflitos é exercido pela chamada “disciplina da quebrada”, que responde hierarquicamente às disciplinas gerais.
PCC e política de segurança
Tudo isso significa que o PCC pode ser apontado como o responsável pela queda do crime no Brasil? É o que parece apontar o senso comum. Nos anos 1980, contudo, o mesmo senso comum já havia escolhido os justiceiros e os grupos de extermínio formados por policiais como responsáveis por manter as taxas criminais sob controle. Questionado sobre o papel do PCC na queda dos homicídios em São Paulo, o ex-secretário nacional de segurança pública, José Vicente da Silva, brincou que, caso a facção seja, de fato, a causa da diminuição das taxas, seria bom levar o PCC para Bahia e Alagoas, onde os homicídios não param de crescer. O fato de o PCC desempenhar um papel de agência reguladora do crime não significa que existe uma relação causal entre sua ação e a queda na violência.
O que se pode dizer com tranquilidade, no entanto, é que o PCC foi um dos efeitos colaterais das políticas de segurança pública paulistas colocadas em prática nos últimos 20 anos. Na busca bem-sucedida de reduzir e coibir os homicídios, o Estado de São Paulo criou também condições para que o mercado do crime se organizasse. Como resultado, ao mesmo tempo em que o estado conseguiu induzir os criminosos a evitar os assassinatos, fortaleceu e contribuiu para dar legitimidade ao PCC e oportunidades para que a facção desenvolvesse seu papel de agência reguladora criminal. Em suma, as políticas de segurança descalibradas provocaram a redução dos homicídios, tendo o fortalecimento do PCC como seu principal efeito colateral.
Basta ver as principais iniciativas nas últimas duas décadas. É motivo de elogios o crescimento nos gastos em segurança pública que melhoraram os equipamentos policiais e a gestão do policiamento, tendo ampliado as vagas em prisões. Mas, se os avanços são visíveis, os defeitos persistem. Os direitos dos presos não são respeitados, e eles próprios são levados a organizar seu cotidiano nas prisões e a garantir a vida dos familiares do lado de fora. Os grupos de extermínio permanecem atuantes na Polícia Militar, produzindo o ódio social que abastece o mundo do crime e as quadrilhas com novos integrantes. A corrupção na Polícia Civil também segue contribuindo para a promoção de crimes seguros e lucrativos. O PCC aproveita essas brechas deixadas no sistema e as preenche para crescer e se fortalecer.
A ampliação do total de presos no estado mexeu profundamente com a cena criminal paulista. Com a multiplicação do encarceramento, que ocorreu de forma atabalhoada, o mundo do crime nunca mais seria o mesmo. Em primeiro lugar, como em nenhum outro lugar do Brasil, o criminoso soube que, muito provavelmente, ao longo de sua trajetória no crime, passaria uma temporada na prisão. Isso faz com se sinta mais vulnerável às investidas policiais. No caso da redução dos homicídios, um dos argumentos de traficantes é que a morte “suja” a área de policiais e os levam a perder dinheiro. O aumento da eficiência da polícia e o crescimento do risco de ser preso em decorrência dos assassinatos, portanto, induziram o crime a organizar maneiras de diminuir conflitos para maximizar lucros e liberdade.
Em segundo lugar, o encarceramento em massa criou os chamados “escritórios” do crime dentro das prisões. A privatização da telefonia e a consequente popularização do celular, a partir dos anos 1990, garantiram a ferramenta necessária para que as conversas entre o lado de dentro e de fora da prisão passassem a correr soltas. Como o futuro na prisão é uma possibilidade real para os que estão livres e praticando crimes do lado de fora, em São Paulo, o “proceder” ditado pelos telefones por trás dos muros passou a ganhar legitimidade. Afinal, quem gostaria de cumprir pena, por anos, rodeado de inimigos? É melhor aceitar as regras.
Conforme os anos passam, a estrutura criminal para organizar o crime vai sendo formada, induzida pelas políticas de segurança pública. Os homicídios caem porque o Estado se torna mais eficiente na coerção aos que praticam crimes e violência. Paralelamente, interessa aos criminosos a pacificação da cena criminal, já que vinganças e traições pioram uma vida que por si só já é muito atribulada.
A base da política de segurança, no entanto, é claramente frágil e demanda aperfeiçoamento. Tanto que, no ano passado, a rixa entre policiais militares e integrantes do PCC foi uma das causas principais do crescimento dos homicídios no Estado, depois de anos ininterruptos de queda. Até onde dura esse equilíbrio no crime paulista e até quando o PCC continua a exercer esse papel de mediador no mundo das sombras é uma resposta que poucos se arriscam a dar. O que pode ocorrer se houver um racha e uma liderança passar a atacar os “sintonias” e os “disciplinas” nos territórios paulistas? E se a facção passar a promover atentados contra autoridades? A única saída, portanto, é enfraquecer a facção com novas políticas, diferentes das que fortaleceram a facção até agora.
Mexicanização – medo, conceito e reação
Durante a segunda metade da década passada, um fantasma rondava as autoridades dedicadas ao combate ao narcotráfico no País. Essa ameaça vinha da possibilidade de que áreas sob o domínio do tráfico de drogas – a exemplo dos morros cariocas – se expandissem pelo País. O poder do narcotráfico e das facções criminosas parecia, então, destinado a nos transformar em um tipo de estado dilacerado pela conflagração entre bandos criminosos infiltrados nas estruturas estatais. A perspectiva não parecia tão irreal quando nos lembramos das ações comandadas por Fernandinho Beira-Mar, matando rivais na prisão e patrocinando ataques pelo Rio de Janeiro, ou, ainda, das ações do PCC, que pararam o estado mais rico do País em 2006. O modelo inominável para as autoridades da segurança pública, a palavra que não se queria pronunciar naqueles anos era um neologismo: mexicanização.
O que se queria dizer com ela? A necessidade de o Estado ter de mobilizar todas as suas forças para lidar com cartéis poderosos – existem nove em atuação no México, combatidos por tropas que foram antes mobilizadas contra a rebelião zapatista em Chiapas. Claro que as diferenças com o Brasil são grandes, a começar pela inexistente fronteira com os Estados Unidos, maior mercado consumidor mundial de drogas. Mas, como garantir que anos de tolerância não permitissem o surgimento de uma megaorganização no crime? Quanto iria demorar para que quadrilhas do narcotráfico se misturassem às de criminosos cujos esquemas desviam dinheiro público para financiar campanhas políticas? Seria um caminho perigoso de ingresso direto no aparato do Estado. Entre os que temiam esse espectro, di fundiu-se o receio de que só com o acionamento das Forças Armadas e com a transformação das ações policiais em ações bélicas é que se alcançaria a eficiência necessária à luta contra essa nova criminalidade.
Os que advogavam o uso das Forças Armadas muitas vezes queriam dizer que o conflito contra o crime organizado não podia ser vencido dentro dos limites do direito penal e do devido processo legal. Queriam rufar os tambores de guerra, com sua legalidade melíflua, com a permissão para emboscadas, tiros nas costas e mortes no calor da luta. Pôr o Exército no combate ao crime é mudar não só as táticas, mas também a estratégia. A partir de então, o objetivo do aparelho estatal não seria mais elucidar delitos e prender criminosos, mas aniquilar a organização inimiga. A doutrina militar clássica ensina que qualquer tipo de comiseração em uma guerra é a pior das disposições que se poder ter em um conflito. Não se vence uma guerra sem sangue. O uso do Exército em situações de manutenção da lei e da ordem – como fazem a Polícia do Exército e outras unidades treinadas para esse fim – é bem diferente das ações de busca de informação e de neutralização de uma organização inimiga, cujo modelo mais conhecido é o do combate à insurgência, conforme definido em La Guerre Moderne (2008), do coronel francês Roger Trinquier.
O temor da mexicanização ficou para trás depois do início da política de pacificação nos morros cariocas e da Pax Sceleris do PCC, iniciada nos presídios paulistas. Em silêncio, a maior facção do País abandonou o ataque direto ao coração do Estado e adotou a estratégia de convivência, enquanto buscava aliados fora de São Paulo e do País. Em 2008, o PCC inaugurou o primeiro acordo internacional com bandidos paraguaios e bolivianos. Passava, então, a receber drogas diretamente da fonte, sem atravessadores. Em seguida, montou estruturas nos dois países vizinhos, internacionalizando-se, um processo acompanhado de perto pela Polícia Federal, que passara a contar naquele ano com adidos nas embaixadas brasileiras de Assunção e de La Paz. O silêncio da facção parecia, a cada dia, levar para mais longe a ameaça de um país dilacerado pela força dos cartéis da droga.
Ao mesmo tempo, o PCC mudava seu estatuto e, assim, o discurso com o qual se dirigia à sua clientela – os lagartos do mundo do crime. Passara a exigir, em seu artigo 18, retaliações e ataques à polícia toda vez que esta agisse fora da lei, executando bandidos ou forjando provas. As escutas recentes do Ministério Público mostram como esse artigo foi usado pelos bandidos para atacar e matar mais de uma centena de policiais paulistas em 2012. O poder estatal só lhe é injusto, conforme demonstram os documentos da facção, porque ele não lhe pertence. O silêncio do PCC e sua nova forma de construir seu poder enfraqueceram os que advogavam a militarização do combate ao crime organizado. O que esses movimentos detectados pela megainvestigação feita por iniciativa do então secretário da Segurança Pública de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, mostram é que poucas são as autoridades da área que compreenderam o fenômeno. Como não sabem diferenciar a criminalidade comum daquela organizada, como não estudaram seu efeitos na sociedade, seus métodos, suas estruturas e objetivos – o reconhecimento pelo Estado de que a organização é dona de uma parcela do direito ao uso da força e da coerção na sociedade como forma de garantir seus negócios –, não sabem como combatê-la, quais instrumentos legais e de força devem ser usados contra as máfias. Há, talvez, uma rara exceção no Brasil – José Mariano Beltrame, com suas UPPs, um política por demais carioca para poder ser replicada em todo o País.
Quais, então, são os instrumentos à disposição para enfrentar o crime organizado? Existem diferentes tipos: desde os mais imediatos, urgentes para estancar a sangria e salvar o paciente, até os de médio e longo prazos, que garantam, depois, uma vida longa e boa ao paciente remediado. As medidas de médio e longo prazos estão relacionadas à própria discussão sobre a retomada por parte do estado da ascendência sobre uma parcela da população que cada vez mais prefere se relacionar no universo sombrio da criminalidade. Essa discussão engloba desde o debate sobre o papel das prisões e a forma do cumprimento das penas, passando principalmente pelos temas do sentido da política de guerra às drogas e da possibilidade da legalização desse tipo de comércio.
Para enfrentar os riscos no curto prazo, contudo, a exemplo do que dizia Raymond Aron, é preciso primeiro “salvar o conceito”. Ele escreveu que, quando pensamos todos os conflitos como se fossem guerras, emprestamos à existência social um “caráter belicoso”. Uns poderiam encontrar o inimigo, o opressor no Conselho Universitário da Universidade de São Paulo ou na polícia; outros, nos black blocs, no ativismo social e político. Sob o pretexto de que a ordem civil está conturbada por bandidos, gangsteres e contestadores, recusamo-nos a distinguir a criminalidade, a luta de classes e a guerra civil. “À maneira de certos estatísticos, incluem-se na mesma categoria todas as modalidade de mortes violentas”, concluiu Aron. Mas, qual o conceito que precisamos salvar? O primeiro é de criminalidade organizada, banalizado pela imprensa e pelos tribunais, que enxergam atrás de qualquer quadrilha uma organização criminosa.
E como fazê-lo? Uma saída seria trazer de forma completa para o nosso ordenamento jurídico a tipificação de associação mafiosa do artigo 41 bis do Código Penal Italiano. Esse delito surgiu na Itália, em 1982. Seu projeto foi apresentado ao parlamento pelo deputado comunista Pio La Torre (História da Máfia, Salvatore Lupo, 2002). Rapidamente, a Máfia identificou o tamanho da ameaça: em 30 de abril daquele ano, o deputado e seu motorista foram cercados, em Palermo, e assassinados a tiros. Foi preciso mais de uma década para que os primeiros resultados da luta antimáfia fossem sentidos na Itália com o aprimoramento dos instrumentos legais de combate àquela organização e à lavagem de dinheiro dos bandidos, com o sequestro de bens e investimentos. No Brasil, as tentativas de se criar o delito de organização criminosa pouco mais fizeram do que vitaminar o crime de formação de quadrilha até que, em agosto de 2013, o país adotou em sua lei o conceito de organização criminosa, conforme definido na Convenção de Palermo, em 2000. A lei reconhece que as máfias devem ser “estruturalmente ordenadas e caracterizadas pela divisão de tarefas”, mas ainda não leva em consideração, como na Itália, o caráter coercitivo desempenhado pelas organizações contra seus integrantes e as pessoas que vivem em suas áreas de atuação, submetidos à lei do silêncio, a fim de garantir a execução de delitos comuns e para o controle de atividades econômicas ou de recursos e serviços públicos.
Não se criou em nosso país um Código Penitenciário, a exemplo do italiano, com seu famoso artigo 41 bis, definindo o cárcere duro como uma forma de cumprimento da pena para mafiosos e terroristas, um forma de pena mais grave do que a reclusão. Aqui, temos o pífio Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), simples castigo carcerário com duração de até um ano para presos de mau comportamento. Trata-se de um dos maiores exemplos de ferramenta contra a delinquência comum usada para lidar com a bandidagem organizada. A questão é simples: o preso comum pode ou não cometer falhas graves em seu caminho para a reinserção social. O mafioso não. O simples fato de ele pertencer a uma organização é uma falta perene, que não cessa. Daí a necessidade de um sistema permanente que o diferencie dos demais detentos. Com o cárcere duro, a progressão de regime prisional seria feita dentro desse modelo de encarceramento. Ou seja, um mafioso só deixa esse regime de pena caso se dissocie da organização. O instrumento da dissociação e mesmo o dos arrependidos são ainda pouco conhecidos no país – apesar da fama conquistada pelas delações premiadas. A verdade é que não se combate o crime organizado com as mesmas leis aplicadas à delinquência comum, algo ainda não compreendido por muitos juízes, promotores, advogados, policiais e parlamentares. São fenômenos distintos, e o perigo que representam é tão diverso como a ação de um trombadinha e a de um sequestrador. Combater o crime organizado não significa aumentar a pena, mas torná-la efetiva, por meio de instrumentos que se mostraram eficazes em outros países.
Em São Paulo, conforme demonstrou a megainvestigação, é necessário não apenas instrumentos legais contra os criminosos, mas também o início de um trabalho de depuração das forças policiais, contaminadas pela corrupção e pela conivência com os bandidos. A própria estratégia usada na megainvestigação é consequência desse problema. Sem acreditar que setores importantes da Polícia Civil fossem capazes de manter o sigilo das investigações, o secretário Ferreira Pinto optou por fazê-la por meio do uso de PMs em parceria com o Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público. Deixados de lado, a reação de vários integrantes da Polícia Civil foi a de questionar a legalidade da apuração. O combate ao crime organizado ficava, assim, sujeito à luta pelo poder dentro do aparelho estatal, levada a cabo por delegados descontentes com o secretário. Outros tentavam bombardear a investigação com receio de que ela flagrasse achaques e casos de corrupção.
Enquanto isso, o Gaeco e os PMs enviavam informações operacionais às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota, que, em pouco tempo, passaria a ser acusada de executar integrantes da facção). O sistema montado pelo governo monitorou os passos do PCC e impediu muitas de suas ações, mas não evitou o florescimento do tráfico e a expansão da organização. Sem falar na guerra entre policiais e criminosos no segundo semestre de 2012. Muitos flagrantes baseados em escutas provocavam mortes, que eram respondidas com mais violência contra a polícia pelos criminosos. Praticamente desmontado em janeiro de 2013, depois da saída de Ferreira Pinto da Secretaria da Segurança, o sistema produziu seu último grande resultado com a apresentação da denúncia criminal dos promotores do Gaeco contra 175 integrantes do PCC no estado. O que virá depois disso? O vazio legal e estrutural no combate à criminalidade organizada só nos deixa ter uma certeza: de que as próximas contabilidades do PCC apreendidas pela polícia vão – como sempre – mostrar o crescimento do faturamento e a diversificação das atividades da organização, que terá todos os motivos para promover novos “pancadões”, a fim de celebrar os futuros aniversários do Primeiro Comando da Capital.
por Bruno Paes Manso, Marcelo Godoy
Bruno Paes Manso é repórter do jornal O Estado de S. Paulo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Marcelo Godoy é chefe de reportagem do caderno Metrópole do jornal O Estado de S. PauloNo dia 6 de outubro, ocorreu mais um “pancadão” na cidade de São Paulo, do qual poucos tiveram notícias ou puderam participar. Ao som do funk estilo ostentação das periferias paulistanas, mulheres celebraram o aniversário de 20 anos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Sem mesmo que as autoridades soubessem, a festa ocorreu dentro da Penitenciária Feminina de Santana, unidade com quase 600 mulheres e espaço para 251 pessoas. Um MC (cantor de funk) veio de fora para tocar na balada, numa cena insólita, mais uma entre tantas as surpresas que a presença e a força do PCC em São Paulo ainda conseguem provocar.
Ao longo dessas últimas duas décadas, desde seu nascimento, no dia 31 de agosto de 1993, já são muitos estudos e reportagens feitas sobre a facção criminosa. A maior parte dos dados foi colhida a partir de grampos e documentos de investigações policiais, mas também foram feitas entrevistas com seus integrantes, que tiveram suas histórias descritas. Ainda assim, existem lacunas a serem preenchidas, questões relevantes que não foram desvendadas. Se os segredos do PCC pudessem ser mostrados pela imagem de um quebra-cabeça, poderia se afirmar que ainda estamos no meio da jornada, em busca das peças-chaves para conseguir enxergar toda a imagem.
Parte das peças desse quebra-cabeça chegou com a investigação feita pelo Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo nos últimos três anos, reveladas pelo jornal O Estado de S. Paulo, que resultou na denúncia de 175 acusados de pertencerem ao grupo. A quantidade de informações reunidas foi um passo importante para se compreender o atual estágio de maturidade do PCC. É como se, de repente, inúmeras peças se encaixassem ao mesmo tempo e apresentassem um retrato mais preciso da facção. Foram milhares de escutas que captaram horas e horas de conversas entre as principais lideranças, além de documentos e provas que chegaram até nas relações promíscuas que os criminosos mantêm com integrantes das forças de segurança. Informações que precisam ser filtradas e contextualizadas na história da facção e do crime em São Paulo.
Num primeiro momento, o impacto da revelação foi político. Novamente, o governo de São Paulo foi forçado a admitir que o PCC permanece forte e atuante dentro e fora dos presídios. Até meados deste ano, os principais responsáveis pela área de segurança diziam à opinião pública que a facção se restringia a não mais que 30 lideranças encarceradas. Documentos revelaram, no entanto, que existem 11.182 filiados ao PCC no Brasil. Só em São Paulo são 7,6 mil, com 1,6 mil deles em liberdade. O PCC já se espalhou por 22 estados e fatura cerca de R$ 8 milhões por mês com o tráfico de drogas e mais R$ 2 milhões com loterias e contribuições. Se, de um lado, a taxa de homicídios em São Paulo havia sido reduzida em mais de 70% na última década, de outro, o universo do crime permanecia funcionando a todo vapor, com seus participantes roubando, vendendo drogas e se articulando para fazer prosperar os negócios ilegais. Como explicar esse aparente paradoxo?
Apontar as principais descobertas sobre a facção, contextualizar essas informações e compreendê-las, tendo em vista as políticas de segurança pública adotadas em São Paulo e no Brasil, nos últimos 20 anos, é o objetivo principal deste artigo. Existem muitas peças soltas que ainda precisam ser encaixadas. Apesar da quantidade acumulada de dados, há questões ainda obscuras. Como, afinal de contas, o PCC ganhou legitimidade na cena criminal paulista? Qual é a real capacidade da facção para liderar e determinar o comportamento dos criminosos no Estado? É mito ou a facção teve algum papel na redução dos homicídios? Como o chamado Partido do Crime cresceu e se fortaleceu justamente em um período em que os governos democráticos paulistas mais investiram na área de segurança pública e mais expandiram o sistema penitenciário? Para dar essas respostas é necessário refletir sobre a história do crime e da violência em São Paulo, retomar a trajetória do PCC e dos criminosos paulistas e comparar o cenário com a situação de outros estados.
O nascimento em meio ao caos
Uma partida de futebol dentro do presídio de segurança máxima, em Taubaté, no interior de São Paulo. Briga entre os times e morte dos envolvidos no entrevero. A punição na prisão era certa, mas oito presos, entre eles Geleião e Cesinha, decidiram se juntar para reduzir o prejuízo. Era dia 31 de agosto de 1993. Assim nasceu o Primeiro Comando da Capital (PCC), que depois se consolida ao propagar aos detentos que surgia para acabar com “a opressão no sistema carcerário”. A versão sobre a origem da facção foi retratada no livro Cobras e Lagartos (2005), do jornalista Josmar Jozino e, hoje, serve de referência aos próprios presos para celebrar o nascimento da facção.
O começo dos anos 1990 foi um período marcante no submundo do crime por razões que só seriam compreendidas em retrospecto, anos depois. Onze meses antes da fundação do PCC, no dia 2 de outubro de 1992, policiais militares ingressaram no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru, durante uma rebelião de presos. O resultado da incursão atabalhoada da Polícia Militar foi a execução de 111 detentos, tragédia que ficou conhecida como o Massacre do Carandiru. Parte da população aplaudiu, segundo pesquisas de opinião. Mas, o sistema penitenciário paulista nunca mais seria o mesmo. O estado compreendeu a necessidade urgente de mudanças. No ano seguinte, seria criada a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, responsável pela expansão do sistema carcerário nos anos que viriam.
Os números mostram a dimensão da guinada na política de segurança nesse período. No começo dos anos 1990, havia, em São Paulo, 94 presos por 100 mil habitantes. O sistema prisional tinha 38 mil presos espalhados por 43 unidades no final do governo Luiz Antonio Fleury Filho. Nos anos que se seguiram, as transformações ocorreram velozmente. Atualmente, existem 157 prisões, que abrigam 210 mil presos, o dobro da capacidade do sistema. São Paulo tem, atualmente, 500 presos por 100 mil habitantes, o que representou um crescimento de 430% em 20 anos. Foi, justamente, associado ao período de expansão intensa dos presídios e da população carcerária que o PCC se fortaleceu e se legitimou.
Entre os presos e criminosos em liberdade, o Massacre do Carandiru fortaleceu o discurso em defesa da união no submundo do crime. O foco deveria ser dirigido contra o Estado, representado pelas forças de segurança. As próprias brechas do sistema eram usadas para tentar dissemi nar a ideia, em um período que ainda não havia telefones celulares. A rebelião em cadeias era uma das estratégias para a expansão. O governador Mário Covas enfrentou uma série delas em 1995, seu primeiro ano de governo. Como a pena pelas rebeliões era a transferência das lideranças conflagradas, a ferramenta foi uma forma importante para disseminar a ideia entre presos de outras unidades.
Era, ainda, preciso evitar mortes desnecessárias no crime, objetivo que durante anos parecia uma utopia inatingível. Do lado de fora da prisão, a década de 1990 havia sido especialmente trágica para homens e jovens das periferias. Desde 1995, a cidade de São Paulo havia ultrapassado a casa dos 50 homicídios por 100 mil habitantes, chegando a 63 mortes por 100 mil habitantes em 1999, taxa mais elevada do que a do Iraque em dois anos de guerra. Nas periferias, os jovens se envolviam em disputas sangrentas, movidos, principalmente, por vingança, respondendo na mesma moeda aos assassinatos contra parentes e amigos – um círculo vicioso intenso e cruel. Nesse contexto de grande tensão, um olhar fixo poderia ser razão para a prática de um novo assassinato, como se os homicídios fossem uma escolha habitual, espécie de remédio para diferentes tipos de conflitos.
Mesmo os criminosos, principais responsáveis pelos assassinatos em São Paulo, já compreendiam que os homicídios eram prejudiciais a eles próprios. Os que passavam dos 25 anos eram chamados de sobreviventes. Sabiam (como contaram em entrevistas) que, ao matar alguém, ficavam sujeitos à vingança e passavam a fazer “hora-extra na terra”. Nesse contexto, o estatuto do PCC, relevado em 1996, fazia sentido ao insistir na defesa da paz e na união “entre os irmãos”, tema presente na maioria dos 16 artigos originais. Apesar do discurso, na prática, assassinatos, conflitos e disputas continuavam batendo recordes. O pico da curva foi alcançado seis anos depois da criação da facção, com mais de 15 mil assassinatos no estado, patamar que permaneceria nos anos de 2000 e 2001, apesar de já revelar uma tendência de queda. As políticas públicas criariam as condições necessárias para que esse novo arranjo social se estabelecesse em território paulista, apesar de as soluções partirem das populações mais afetadas pela violência.
Assim como ocorre em países em guerra, São Paulo também produziu uma geração de finados dos anos 1990. A lacuna demográfica que se formava provocou reações nas comunidades mais atingidas pelas mortes, uma tentativa de se buscar saídas para reverter o caminho do autoextermínio. As respostas vieram em diversas frentes. É a época dos Racionais MCs e da cena hip-hop paulistana, que se autointitulava a CNN da Periferia, dos livros e cinemas periféricos, que ajudaram na reflexão e na crítica sobre o momento crítico. As igrejas neopentecostais, que ofereciam o caminho da conversão para mudar de vida, também se voltaram para o resgate daqueles que tentavam fugir desse ciclo, cujo destino é o “cemitério ou a cadeia”.
A dura realidade moldou o comportamento dos jovens locais, fortalecendo valores de respeito horizontal entre homens que se relacionam de igual para igual. O lema da torcida organizada corintiana Gaviões da Fiel segue a mesma linha. O popular LHP (Lealdade, Humildade e Procedimento), pregado nos estádios, escrito em uma bandeira de 120 metros de comprimento, defende, acima de tudo, o respeito entre os integrantes do grupo e a submissão às regras da torcida. A ideia é que os corintianos não devem brigar entre si, mas nada os impede de ser desleais e arrogantes com são-paulinos e palmeirenses.
O “ladrão”, “vida loka” ou “correria”, empregado na “profissão perigo”, o homem que vive em um contexto violento, deve saber respeitar e só atacar na hora certa. No crime, ele precisa seguir “o caminho certo da vida errada”, o que significa que a arma pode estar virada contra “os outros”, mas nunca estar voltada para os próprios irmãos. Ter proceder (agir de acordo com as regras do mundo do crime) é uma das principais qualidades que se espera do criminoso paulista. É em cima dessa tremenda sensação de vulnerabilidade, cria da no contexto de caos das periferias nos anos 1980 e 1990, que o PCC vai conseguir crescer e se legitimar dentro e fora das prisões.
Economia do crime e a mediação no mundo das sombras
A construção dessa estrutura de organização do mundo do crime foi ganhando formato aos poucos, mudando de acordo com os erros. Duas são as pilastras principais desse arcabouço. De um lado, o PCC é fortemente liberal diante das carreiras criminosas individuais. A facção não tenta estender seus tentáculos sobre a iniciativa dos ladrões e traficantes autônomos que querem ganhar dinheiro. Quanto mais próximos da facção, no entanto, maior a proteção por parte dos irmãos, importante principalmente nas temporadas dentro da prisão. De outro lado, o PCC é duro e cruel para punir aqueles que desobedecem as normas do “proceder” criminal. São penalizados os que contribuem para a desordem nos territórios e prisões onde a facção está presente. Assim, todos os ladrões são livres para atacar os patrimônios alheios, mas é preciso respeitar as regras do crime e não atropelar criminosos e moradores de bairros onde os negócios são feitos. Diante de conflitos no crime, a primeira opção é “esticar o chiclete”, gíria que significa argumentar, em substituição ao uso das armas e balas. Estava inaugurada uma nova burocracia do crime. Matar se transformara em uma atividade controlada por normas e ritos.
A partir do aprimoramento do papel de agência reguladora do crime, exercido pela facção, a economia ilegal paulista vem prosperando sem a ocorrência de grandes conflitos que desencadeiem guerras no submundo criminal. Em 2012, ocorreram 237 mil roubos no Estado de São Paulo e 195 mil roubos e furtos de carros. Trata-se de uma produtividade e tanto. Somados, representam 50 casos por hora. São crimes que não podem ser vistos de forma isolada. Por trás de cada automóvel levado, há uma ampla rede de contatos, como receptadores, funcionários para esquentar documentos, desmanches que separam e desovam as peças no mercado, entre outros. O mesmo ocorre com o incomensurável mercado de drogas paulista. Em 2012, foram 41 mil flagrantes por tráfico. O comerciante de drogas no varejo precisa se relacionar com atacadistas de diferentes portes, lidar com as polícias, sem falar na promoção de festas, vistas, atualmente, como uma forma de movimentar o mercado. Há, ainda, a negociação das armas de fogo, que também faz parte dessa rede intrincada de negócios ilegais. O PCC é um importante atacadista, mas a droga pode ser comprada de outros fornecedores, conforme mostram as escutas do MPE.
Os mais de 210 mil nas prisões também fazem parte desse universo. Considerando os familiares dos presos, pode-se dizer que cerca de um milhão de pessoas gravitam direta ou indiretamente em torno das rotinas do cárcere, que envolvem também visitas em ônibus para o interior do estado, jumbos (pacotes) com comidas e outros produtos para ajudar a manter os presos, entre outras tarefas.
Toda essa multidão que integra a economia do crime, atualmente representando um percentual importante da população paulista, praticamente não pode contar com o Estado. No caso dos criminosos, eles dependem justamente da ausência do Estado para fazer prosperar suas atividades ilegais. Como não contam com o auxílio das polícias ou da Justiça para resolver conflitos e cumprir acordos, eles se relacionam em um contexto propício para se transformar em selvas, onde “um dia você é o predador, no outro é a presa”, como diz a letra dos Racionais. A legitimidade do PCC nesse cenário cresceu conforme o nome da facção passou a ser vendido como a instituição capaz de mediar conflitos e garantir a manutenção do “proceder” em territórios e mercados anteriormente conflagrados. Uma espécie de ordem paraestatal, que busca exercer o monopólio da força onde grupelhos e indivíduos sempre se digladiaram entre si.
Vale comparar com a trajetória seguida pelas facções no Rio de Janeiro. No final dos anos 1970, os criminosos fluminenses começaram a se organizar dentro das prisões. Era a mesma época em que o comércio de cocaína começava a crescer no mundo, vinda do Peru, da Bolívia e da Colômbia. Na década seguinte, quando os cartéis de Cali e Medellín buscavam parcerias, o Comando Vermelho (CV) já havia se estruturado minimamente e optado pelo tráfico de drogas como forma de financiamento.
Apesar de ter nascido também com a proposta de lidar com a desordem nas prisões, o CV cresce voltado fundamentalmente para o lucro no comércio de drogas. Entre os anos de 1983 e 1986, iniciou sua ofensiva para dominar as bocas de fumo tradicionais nos morros do Rio de Janeiro. Em 1985, estudos estimam que o CV já comandava 70% de todos os pontos de venda. A organização buscou assumir o monopólio no varejo para poder negociar em boa posição com os atacadistas internacionais.
A facção, assim, estabeleceu o formato do negócio altamente hierarquizado, dominando o cotidiano dos territórios, com estruturas que chegavam a até 500 homens em um morro. O objetivo era aumentar os lucros e ampliar os mercados. Não se buscava organizar um cenário conflagrado, como em São Paulo. Líder do Comando Vermelho, Fernandinho Beira-Mar foi, na década de 1990, o maior atacadista brasileiro de drogas, com contatos no Paraguai, na Bolívia e na Colômbia. Segundo relatórios da inteligência da Polícia do Rio de Janeiro no período, movimentava US$ 240 milhões por ano e tinha faturamento líquido de US$ 44 milhões. Quatro vezes mais do que as estimativas atuais sobre o PCC.
Em meados dos anos 1990, desavenças entre os cabeças da facção CV provocaram um racha que levou ao surgimento de facções rivais, como o Terceiro Comando (TC) e Amigos dos Amigos (ADA). Eles precisaram montar estruturas semelhantes para competir e disputar mercados na base das invasões e tiros de fuzis. Depois de mais de quase 20 anos de disputas, o processo de fragilização das facções ficou claro em 2010, com a ocupação das forças de segurança do Complexo do Alemão e a cena dos traficantes em fuga. A trégua seria uma necessidade para baratear os custos da operação da droga.
A questão da pacificação, portanto, não é moral, mas estratégica. PCC não é melhor que CV, TC ou ADA. Tanto Beira-Mar como integrantes do PCC já foram acusados de torturas capazes de embrulhar o estômago. Em São Paulo, até um coração foi comido em um ritual dentro da prisão. A diferença dos caminhos seguidos foi decorrência da estratégia usada pelos grupos diante do contexto que se apresentava. Mais de 30 anos depois do boom do tráfico no Brasil, a via escolhida pelo PCC, consolidada somente na última década, tem dado mais resultados, e o grupo paulista é hoje o mais forte e mais influente no universo criminal brasileiro.
“O crime fortalece o crime”, disse por celular o fora-da-lei paulista Gegê do Mangue, em 2010, ao seu parceiro no crime fluminense Nem, que era o chefe do tráfico na Rocinha e integrante da facção Amigos dos Amigos (ADA). A conversa deixava evidente a estratégia das partes nos tempos atuais. O PCC, que já era parceiro de Beira-Mar e do CV, queria vender também para a ADA. Eles perguntam a Nem se ele se incomodava com a relação entre PCC e CV. Nem afirma que não e que aceita conversar. A Rocinha ainda não havia sido pacificada. O líder da facção fluminense diz que mortes e lutas anteriores não permitem que CV e ADA se aproximem, mas aceita um acordo para cessar as invasões de território e tomadas de mercado à força. Anos de disputas sangrentas, que fazem parte da história do crime no Brasil, já ensinaram suas lideranças: homicídio significa prejuízo. Trocaram a guerra pela Pax Sceleris.
O discurso dos criminosos paulistas em defesa da ordenação da selva e a criação desse arcabouço para organizar as ações no crime fortaleceram o mito de que o PCC teria sido responsável pela queda dos assassinatos em São Paulo ao longo da ultima década. Um dos que defendem a tese é Marco Herbas Camacho, o Marcola, apontado como articulador número 1 do PCC. Ele o faz em uma conversa por celular com outro criminoso em 2011, no interior da Penitenciária de Presidente Venceslau 2. “Hoje para matar alguém é a maior burocracia”, falou Marcola no grampo, referindo-se às normas impostas pela facção na cena do crime. “Então, quer dizer. Os homicídios caíram não sei quantos por cento e aí eu vejo o governador chegar lá e falar que foi ele”, completou o criminoso.
E de fato essa burocracia existe. De acordo com as normas na atualidade, quando alguém tem alguma queixa contra outro na prisão ou em um território onde a facção exerce influência, deve se dirigir a um tribunal do PCC. “Sangue se paga com sangue” é um dos lemas, que significa que mortes praticadas sem o aval ou contra os interesses da facção levam ao assassinato do autor. Os “debates”, espécies de julgamentos informais, já foram narrados em grampos, relatados por moradores e testemunhados por jornalistas e pesquisadores. Pode envolver penas leves e pesadas. Em um dos eventos ocorridos, no bairro do Jaçanã, na periferia norte de São Paulo, um traficante, acusado de bater injustamente no rosto de um morador, foi condenado a receber dois socos no rosto dados pela vítima. O controle desses conflitos é exercido pela chamada “disciplina da quebrada”, que responde hierarquicamente às disciplinas gerais.
PCC e política de segurança
Tudo isso significa que o PCC pode ser apontado como o responsável pela queda do crime no Brasil? É o que parece apontar o senso comum. Nos anos 1980, contudo, o mesmo senso comum já havia escolhido os justiceiros e os grupos de extermínio formados por policiais como responsáveis por manter as taxas criminais sob controle. Questionado sobre o papel do PCC na queda dos homicídios em São Paulo, o ex-secretário nacional de segurança pública, José Vicente da Silva, brincou que, caso a facção seja, de fato, a causa da diminuição das taxas, seria bom levar o PCC para Bahia e Alagoas, onde os homicídios não param de crescer. O fato de o PCC desempenhar um papel de agência reguladora do crime não significa que existe uma relação causal entre sua ação e a queda na violência.
O que se pode dizer com tranquilidade, no entanto, é que o PCC foi um dos efeitos colaterais das políticas de segurança pública paulistas colocadas em prática nos últimos 20 anos. Na busca bem-sucedida de reduzir e coibir os homicídios, o Estado de São Paulo criou também condições para que o mercado do crime se organizasse. Como resultado, ao mesmo tempo em que o estado conseguiu induzir os criminosos a evitar os assassinatos, fortaleceu e contribuiu para dar legitimidade ao PCC e oportunidades para que a facção desenvolvesse seu papel de agência reguladora criminal. Em suma, as políticas de segurança descalibradas provocaram a redução dos homicídios, tendo o fortalecimento do PCC como seu principal efeito colateral.
Basta ver as principais iniciativas nas últimas duas décadas. É motivo de elogios o crescimento nos gastos em segurança pública que melhoraram os equipamentos policiais e a gestão do policiamento, tendo ampliado as vagas em prisões. Mas, se os avanços são visíveis, os defeitos persistem. Os direitos dos presos não são respeitados, e eles próprios são levados a organizar seu cotidiano nas prisões e a garantir a vida dos familiares do lado de fora. Os grupos de extermínio permanecem atuantes na Polícia Militar, produzindo o ódio social que abastece o mundo do crime e as quadrilhas com novos integrantes. A corrupção na Polícia Civil também segue contribuindo para a promoção de crimes seguros e lucrativos. O PCC aproveita essas brechas deixadas no sistema e as preenche para crescer e se fortalecer.
A ampliação do total de presos no estado mexeu profundamente com a cena criminal paulista. Com a multiplicação do encarceramento, que ocorreu de forma atabalhoada, o mundo do crime nunca mais seria o mesmo. Em primeiro lugar, como em nenhum outro lugar do Brasil, o criminoso soube que, muito provavelmente, ao longo de sua trajetória no crime, passaria uma temporada na prisão. Isso faz com se sinta mais vulnerável às investidas policiais. No caso da redução dos homicídios, um dos argumentos de traficantes é que a morte “suja” a área de policiais e os levam a perder dinheiro. O aumento da eficiência da polícia e o crescimento do risco de ser preso em decorrência dos assassinatos, portanto, induziram o crime a organizar maneiras de diminuir conflitos para maximizar lucros e liberdade.
Em segundo lugar, o encarceramento em massa criou os chamados “escritórios” do crime dentro das prisões. A privatização da telefonia e a consequente popularização do celular, a partir dos anos 1990, garantiram a ferramenta necessária para que as conversas entre o lado de dentro e de fora da prisão passassem a correr soltas. Como o futuro na prisão é uma possibilidade real para os que estão livres e praticando crimes do lado de fora, em São Paulo, o “proceder” ditado pelos telefones por trás dos muros passou a ganhar legitimidade. Afinal, quem gostaria de cumprir pena, por anos, rodeado de inimigos? É melhor aceitar as regras.
Conforme os anos passam, a estrutura criminal para organizar o crime vai sendo formada, induzida pelas políticas de segurança pública. Os homicídios caem porque o Estado se torna mais eficiente na coerção aos que praticam crimes e violência. Paralelamente, interessa aos criminosos a pacificação da cena criminal, já que vinganças e traições pioram uma vida que por si só já é muito atribulada.
A base da política de segurança, no entanto, é claramente frágil e demanda aperfeiçoamento. Tanto que, no ano passado, a rixa entre policiais militares e integrantes do PCC foi uma das causas principais do crescimento dos homicídios no Estado, depois de anos ininterruptos de queda. Até onde dura esse equilíbrio no crime paulista e até quando o PCC continua a exercer esse papel de mediador no mundo das sombras é uma resposta que poucos se arriscam a dar. O que pode ocorrer se houver um racha e uma liderança passar a atacar os “sintonias” e os “disciplinas” nos territórios paulistas? E se a facção passar a promover atentados contra autoridades? A única saída, portanto, é enfraquecer a facção com novas políticas, diferentes das que fortaleceram a facção até agora.
Mexicanização – medo, conceito e reação
Durante a segunda metade da década passada, um fantasma rondava as autoridades dedicadas ao combate ao narcotráfico no País. Essa ameaça vinha da possibilidade de que áreas sob o domínio do tráfico de drogas – a exemplo dos morros cariocas – se expandissem pelo País. O poder do narcotráfico e das facções criminosas parecia, então, destinado a nos transformar em um tipo de estado dilacerado pela conflagração entre bandos criminosos infiltrados nas estruturas estatais. A perspectiva não parecia tão irreal quando nos lembramos das ações comandadas por Fernandinho Beira-Mar, matando rivais na prisão e patrocinando ataques pelo Rio de Janeiro, ou, ainda, das ações do PCC, que pararam o estado mais rico do País em 2006. O modelo inominável para as autoridades da segurança pública, a palavra que não se queria pronunciar naqueles anos era um neologismo: mexicanização.
O que se queria dizer com ela? A necessidade de o Estado ter de mobilizar todas as suas forças para lidar com cartéis poderosos – existem nove em atuação no México, combatidos por tropas que foram antes mobilizadas contra a rebelião zapatista em Chiapas. Claro que as diferenças com o Brasil são grandes, a começar pela inexistente fronteira com os Estados Unidos, maior mercado consumidor mundial de drogas. Mas, como garantir que anos de tolerância não permitissem o surgimento de uma megaorganização no crime? Quanto iria demorar para que quadrilhas do narcotráfico se misturassem às de criminosos cujos esquemas desviam dinheiro público para financiar campanhas políticas? Seria um caminho perigoso de ingresso direto no aparato do Estado. Entre os que temiam esse espectro, di fundiu-se o receio de que só com o acionamento das Forças Armadas e com a transformação das ações policiais em ações bélicas é que se alcançaria a eficiência necessária à luta contra essa nova criminalidade.
Os que advogavam o uso das Forças Armadas muitas vezes queriam dizer que o conflito contra o crime organizado não podia ser vencido dentro dos limites do direito penal e do devido processo legal. Queriam rufar os tambores de guerra, com sua legalidade melíflua, com a permissão para emboscadas, tiros nas costas e mortes no calor da luta. Pôr o Exército no combate ao crime é mudar não só as táticas, mas também a estratégia. A partir de então, o objetivo do aparelho estatal não seria mais elucidar delitos e prender criminosos, mas aniquilar a organização inimiga. A doutrina militar clássica ensina que qualquer tipo de comiseração em uma guerra é a pior das disposições que se poder ter em um conflito. Não se vence uma guerra sem sangue. O uso do Exército em situações de manutenção da lei e da ordem – como fazem a Polícia do Exército e outras unidades treinadas para esse fim – é bem diferente das ações de busca de informação e de neutralização de uma organização inimiga, cujo modelo mais conhecido é o do combate à insurgência, conforme definido em La Guerre Moderne (2008), do coronel francês Roger Trinquier.
O temor da mexicanização ficou para trás depois do início da política de pacificação nos morros cariocas e da Pax Sceleris do PCC, iniciada nos presídios paulistas. Em silêncio, a maior facção do País abandonou o ataque direto ao coração do Estado e adotou a estratégia de convivência, enquanto buscava aliados fora de São Paulo e do País. Em 2008, o PCC inaugurou o primeiro acordo internacional com bandidos paraguaios e bolivianos. Passava, então, a receber drogas diretamente da fonte, sem atravessadores. Em seguida, montou estruturas nos dois países vizinhos, internacionalizando-se, um processo acompanhado de perto pela Polícia Federal, que passara a contar naquele ano com adidos nas embaixadas brasileiras de Assunção e de La Paz. O silêncio da facção parecia, a cada dia, levar para mais longe a ameaça de um país dilacerado pela força dos cartéis da droga.
Ao mesmo tempo, o PCC mudava seu estatuto e, assim, o discurso com o qual se dirigia à sua clientela – os lagartos do mundo do crime. Passara a exigir, em seu artigo 18, retaliações e ataques à polícia toda vez que esta agisse fora da lei, executando bandidos ou forjando provas. As escutas recentes do Ministério Público mostram como esse artigo foi usado pelos bandidos para atacar e matar mais de uma centena de policiais paulistas em 2012. O poder estatal só lhe é injusto, conforme demonstram os documentos da facção, porque ele não lhe pertence. O silêncio do PCC e sua nova forma de construir seu poder enfraqueceram os que advogavam a militarização do combate ao crime organizado. O que esses movimentos detectados pela megainvestigação feita por iniciativa do então secretário da Segurança Pública de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, mostram é que poucas são as autoridades da área que compreenderam o fenômeno. Como não sabem diferenciar a criminalidade comum daquela organizada, como não estudaram seu efeitos na sociedade, seus métodos, suas estruturas e objetivos – o reconhecimento pelo Estado de que a organização é dona de uma parcela do direito ao uso da força e da coerção na sociedade como forma de garantir seus negócios –, não sabem como combatê-la, quais instrumentos legais e de força devem ser usados contra as máfias. Há, talvez, uma rara exceção no Brasil – José Mariano Beltrame, com suas UPPs, um política por demais carioca para poder ser replicada em todo o País.
Quais, então, são os instrumentos à disposição para enfrentar o crime organizado? Existem diferentes tipos: desde os mais imediatos, urgentes para estancar a sangria e salvar o paciente, até os de médio e longo prazos, que garantam, depois, uma vida longa e boa ao paciente remediado. As medidas de médio e longo prazos estão relacionadas à própria discussão sobre a retomada por parte do estado da ascendência sobre uma parcela da população que cada vez mais prefere se relacionar no universo sombrio da criminalidade. Essa discussão engloba desde o debate sobre o papel das prisões e a forma do cumprimento das penas, passando principalmente pelos temas do sentido da política de guerra às drogas e da possibilidade da legalização desse tipo de comércio.
Para enfrentar os riscos no curto prazo, contudo, a exemplo do que dizia Raymond Aron, é preciso primeiro “salvar o conceito”. Ele escreveu que, quando pensamos todos os conflitos como se fossem guerras, emprestamos à existência social um “caráter belicoso”. Uns poderiam encontrar o inimigo, o opressor no Conselho Universitário da Universidade de São Paulo ou na polícia; outros, nos black blocs, no ativismo social e político. Sob o pretexto de que a ordem civil está conturbada por bandidos, gangsteres e contestadores, recusamo-nos a distinguir a criminalidade, a luta de classes e a guerra civil. “À maneira de certos estatísticos, incluem-se na mesma categoria todas as modalidade de mortes violentas”, concluiu Aron. Mas, qual o conceito que precisamos salvar? O primeiro é de criminalidade organizada, banalizado pela imprensa e pelos tribunais, que enxergam atrás de qualquer quadrilha uma organização criminosa.
E como fazê-lo? Uma saída seria trazer de forma completa para o nosso ordenamento jurídico a tipificação de associação mafiosa do artigo 41 bis do Código Penal Italiano. Esse delito surgiu na Itália, em 1982. Seu projeto foi apresentado ao parlamento pelo deputado comunista Pio La Torre (História da Máfia, Salvatore Lupo, 2002). Rapidamente, a Máfia identificou o tamanho da ameaça: em 30 de abril daquele ano, o deputado e seu motorista foram cercados, em Palermo, e assassinados a tiros. Foi preciso mais de uma década para que os primeiros resultados da luta antimáfia fossem sentidos na Itália com o aprimoramento dos instrumentos legais de combate àquela organização e à lavagem de dinheiro dos bandidos, com o sequestro de bens e investimentos. No Brasil, as tentativas de se criar o delito de organização criminosa pouco mais fizeram do que vitaminar o crime de formação de quadrilha até que, em agosto de 2013, o país adotou em sua lei o conceito de organização criminosa, conforme definido na Convenção de Palermo, em 2000. A lei reconhece que as máfias devem ser “estruturalmente ordenadas e caracterizadas pela divisão de tarefas”, mas ainda não leva em consideração, como na Itália, o caráter coercitivo desempenhado pelas organizações contra seus integrantes e as pessoas que vivem em suas áreas de atuação, submetidos à lei do silêncio, a fim de garantir a execução de delitos comuns e para o controle de atividades econômicas ou de recursos e serviços públicos.
Não se criou em nosso país um Código Penitenciário, a exemplo do italiano, com seu famoso artigo 41 bis, definindo o cárcere duro como uma forma de cumprimento da pena para mafiosos e terroristas, um forma de pena mais grave do que a reclusão. Aqui, temos o pífio Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), simples castigo carcerário com duração de até um ano para presos de mau comportamento. Trata-se de um dos maiores exemplos de ferramenta contra a delinquência comum usada para lidar com a bandidagem organizada. A questão é simples: o preso comum pode ou não cometer falhas graves em seu caminho para a reinserção social. O mafioso não. O simples fato de ele pertencer a uma organização é uma falta perene, que não cessa. Daí a necessidade de um sistema permanente que o diferencie dos demais detentos. Com o cárcere duro, a progressão de regime prisional seria feita dentro desse modelo de encarceramento. Ou seja, um mafioso só deixa esse regime de pena caso se dissocie da organização. O instrumento da dissociação e mesmo o dos arrependidos são ainda pouco conhecidos no país – apesar da fama conquistada pelas delações premiadas. A verdade é que não se combate o crime organizado com as mesmas leis aplicadas à delinquência comum, algo ainda não compreendido por muitos juízes, promotores, advogados, policiais e parlamentares. São fenômenos distintos, e o perigo que representam é tão diverso como a ação de um trombadinha e a de um sequestrador. Combater o crime organizado não significa aumentar a pena, mas torná-la efetiva, por meio de instrumentos que se mostraram eficazes em outros países.
Em São Paulo, conforme demonstrou a megainvestigação, é necessário não apenas instrumentos legais contra os criminosos, mas também o início de um trabalho de depuração das forças policiais, contaminadas pela corrupção e pela conivência com os bandidos. A própria estratégia usada na megainvestigação é consequência desse problema. Sem acreditar que setores importantes da Polícia Civil fossem capazes de manter o sigilo das investigações, o secretário Ferreira Pinto optou por fazê-la por meio do uso de PMs em parceria com o Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público. Deixados de lado, a reação de vários integrantes da Polícia Civil foi a de questionar a legalidade da apuração. O combate ao crime organizado ficava, assim, sujeito à luta pelo poder dentro do aparelho estatal, levada a cabo por delegados descontentes com o secretário. Outros tentavam bombardear a investigação com receio de que ela flagrasse achaques e casos de corrupção.
Enquanto isso, o Gaeco e os PMs enviavam informações operacionais às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota, que, em pouco tempo, passaria a ser acusada de executar integrantes da facção). O sistema montado pelo governo monitorou os passos do PCC e impediu muitas de suas ações, mas não evitou o florescimento do tráfico e a expansão da organização. Sem falar na guerra entre policiais e criminosos no segundo semestre de 2012. Muitos flagrantes baseados em escutas provocavam mortes, que eram respondidas com mais violência contra a polícia pelos criminosos. Praticamente desmontado em janeiro de 2013, depois da saída de Ferreira Pinto da Secretaria da Segurança, o sistema produziu seu último grande resultado com a apresentação da denúncia criminal dos promotores do Gaeco contra 175 integrantes do PCC no estado. O que virá depois disso? O vazio legal e estrutural no combate à criminalidade organizada só nos deixa ter uma certeza: de que as próximas contabilidades do PCC apreendidas pela polícia vão – como sempre – mostrar o crescimento do faturamento e a diversificação das atividades da organização, que terá todos os motivos para promover novos “pancadões”, a fim de celebrar os futuros aniversários do Primeiro Comando da Capital.
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